quinta-feira, outubro 21, 2004

Do Not Consider Yourself Free

Façam silêncio! - disse a professora. Os que não se comportarem vão voltar para o ônibus. Era bem difícil controlar uma turma de mais ou menos dezesseis mil alunos do ensino fundamental da Chris Carraba College para formação de cadetes emotivos. O guia do museu que acompanhava a turma mostrou com a mão que eles entrariam na galeria dedicada aos estudos de História Hardcoreana , período Veranus Revolucionaris. Mrs. Kira virou-se para os adolescentes de olhos vivazes e orelhas alargadas e falou, diminuindo um pouco o tom de voz para conferir ao momento a solenidade necessária. Pigarreou.

- Garotos, agora vamos entrar na parte mais importante de nossa visita aqui no MoMA (Museum of MacKaye’s Artefacts). Todos peguem seus palm tops, seus iPods e suas câmeras digitais. Eu quero que vocês absorvam o máximo dessa nossa passagem.


Mrs. Kira era uma professora da velha escola, literalmente. Os cabelos grisalhos e o visual propositalmente desleixado contrastavam com a assepsia de sua classe de meninos e meninas de Carraba. Garotos cujos pais esforçavam-se ao máximo para pagar a ridiculamente alta mensalidade na esperança de -um dia, quem sabe?- verem seus pimpolhos num cargo de destaque no M.T.V. (Ministério de Trâmites Videocomerciais). Os cadetes ao saberem que estariam diante de informações valiosas para seu futuro profissional se organizaram em fila militar e seguiram Mrs. Kira e o guia. O grupo atravessou um grande arco donde pendiam quatro imensas bandeiras negras, Kira deixou que o pano grosso e empoeirado tocasse seu rosto, causando uma série de espirros. Os demais alunos desviaram do contato direto com aquele símbolo de eras remotas assim como desviavam de tudo que não lhes parecesse doméstico e inofensivo demais. O que havia naquelas galerias era muito mais do que meninos e meninas como Boom Boom Kid, Fresno, Dandara e Jimmy Eatworld poderiam sequer imaginar.

Em ambos os lados da extensa galeria dispunham-se milhares de projetores holográficos de última geração que eram acionados assim que alguém se aproximasse. Eram imagens de homens e mulheres que gritavam, suavam, cuspiam, se socavam em um estado próximo a catarse. Os alunos podiam se aproximar e interagir tocando, falando, sentindo as imagens com seus kits de realidade virtual, mas preferiam andar agrupados, um tanto temerosos, pelo meio da galeria, evitando o contato direto com as coisas, como estavam mais acostumados.

Agrupados de forma compacta eles pararam ao redor de um estranho e arcaico aparelho da época. Era uma espécie de caixa com uma bandeja que sustentava um arquivo musical grande, redondo, preto e com um furo no meio. Da caixa saia uma manopla cibernética com uma agulha em sua ponta que acionava o arquivo.

- O que é isso, Mrs. Kira?- Quis saber um aluno.
- Chama-se disco de vinil, eles continham os arquivos musicais das bandas que eram vendidos em forma de troca monetária nas chamadas “gigs”.
- Eles vendiam pessoalmente seus próprios arquivos?!
- Isso mesmo!

Era muita informação para os cadetes emotivos. Eles não entendiam a razão de um grupo precisar produzir mais de dois arquivos musicais. E esse estranho ritual de reproduzir seus arquivos mantendo-se em contato com outros? “Eles realmente reproduziam manualmente seus arquivos na frente de outras pessoas, professora?”. Enquanto os alunos continuavam demonstrando um pequeno interesse pela obsoleta invenção Mrs. Kira deparou-se sobre a imagem holográfica de um grupo que tocava um som ao mesmo tempo barulhento e melodioso. Os acordes e a performance do vocalista pareciam capturar Kira deixando-a tão completamente absorta que mal pôde responder a pergunta de um cadete.

-Mrs. Kira, toda essa performance interativa entre o grupo de reprodutores e o grupo de consumidores era uma espécie de rito cotidiano?
- Sim... Ritos... da primavera...- limitou-se a dizer.

O grupo continuou sua peregrinação acompanhado do guia até serem capturados pelo timbre semi-hipnótico e as melodias de um grupo que repetia que não havia liberdade.

-Não se considere livre!- cantava a holografia.
-Não nos consideramos livres. Não nos consideramos livres. Não nos consideramos livres.- repetiam roboticamente atendendo aquilo que, a partir de agora, era seu novo mantra.

“Professora, esse homem na holografia diz que não somos livres, é verdade?”, Kira sorriu e pensou “...E que estávamos fora de compasso com o mundo porque éramos só uma ameaça menor... Espere até saber que você não é o que você possui, garoto”.

- Não, não é verdade. Acalmou a professora.
-Não é verdade! Não é verdade! Não é verdade!

E quanto mais os cadetes, sua professora e o guia avançavam pelos corredores largos da galeria, mas o grupo de meninos se assustava. Eles nunca poderiam imaginar que num mundo asséptico e por isso opressor, cheio de uma emoção calculada e fria, pudesse haver grupos de meninos e meninas como eles agindo daquela forma tão fora dos padrões. E o que é pior, aqueles selvagens atribuíam para si a criação da sociedade como ela era hoje. Aqueles bárbaros clamavam ser o que eles hoje admitiam ser, mas não sem disfarçada vergonha. Seriam eles, cadetes emotivos, bárbaros selvagens? Poderiam aqueles selvagens tão diferentes deles ser também emotivos? Todos pareciam atemorizados com a idéia de proximidade de um passado tão sujo e fora da ordem. Todos menos Mrs. Kira. Ela, pelo contrário, parecia estar definitivamente intoxicada pelos eflúvios desse banho de velharia perigosa e subestimada. Passear pelas galerias do velho museu havia reascendido algo no coração de Kira e ela não deixaria esse sentimento ser deletado tão facilmente. Afinal, melhor que todos aqueles adolescentes inúteis e medrosos Kira sabia que as coisas já haviam sido bem melhores do que no sombrio ano de 2005.

Um comentário:

Ale et Alii disse...

Ficou foda! Eu tenho um conto que tá no zine e se chama "A Preceptora". É a história de Mrs. Willsmith, uma preceptora inglesa, criada na Bélgica e que ensina uma menina tosca da aristocracia a ser straight edge.