segunda-feira, agosto 20, 2007

You're Living at the Movies

Os dois estavam sentados um de frente para o outro, analisando discreta e detalhadamento o rosto e os movimentos das mãos. De vez em quando, pousavam-nas uma sobre a do outro e entrelaçavam os dedos. Estavam gostando de estar ali, naquele café de um cinema de arte, conversando sobre filmes e se conhecendo melhor.

Henrique aceitara o convite inesperado de Paulo quando esse foi devolver alguns dvds do Kurosawa na locadora em que trabalhava. "Amanha à tarde lá no Estação, antes da sessão daquele iraniano que está super-elogiado, que tal?". Que tal? Ele foi, fazia tempo que não saia com um cara com quem pudesse conversar, dar as mãos e tomar capuccino no meio da tarde de um dia de semana (estava usando sua folga). Achava aquilo meio europeu. Se sentiu super-cool, apesar do fato de que não saberia descrever a sensação dessa forma, muito porque não faz idéia de como se escreve 'cool'. Henrique nunca fez IBEU.

Era Paulo quem comandava a discussão, falando sem parar sobre cinema, sobre moda, sobre seu emprego no escritório de direito de um amigo do pai. Henrique só o ouvia num misto de timidez e admiração sincera por aquele rapaz tão fino e inteligente da sua idade. Paulo estava empolgado com aquele climinha sétima arte e desandou a falar sobre frases de cinema, então. Henrique se sentiu mais à vontade para participar ativamente do papo, afinal, não bastasse ser caixa de uma locadora, era fã de filmes, fosse qual fosse o gênero.

Eu adoro aquela frase de "Um Bonde Chamado Desejo", "Sempre dependi da generosidade de estranhos", acho forte e acho bonita! - disse Paulo
- Também acho, respondeu Henrique e pensou que ele também já dependeu muito da generosidade de estranhos. Da generosidade e do tesão de estranhos, pra ser mais sincero.
- Ai, você pode me achar brega, continuou Paulo - Mas eu aaaamo "... E O Vento Levou". Scarlet O' Hara é tudo!
Henrique se empolgou e, quase impostando a voz, repetiu um "Jamais passarei fome outra vez" que, para ele, tinha um fundo de verdade se levarmos em conta os dias em que aguentou bravamente a volta de barca pra casa com um huimilíssimo pão com ovo a lhe enganar a fome.

Estavam se dando muito bem, era nítido. Já falavam mais alto, os dedos entrelaçados eram mais frequentes e os carinhos bem menos discretos. Paulo gostava daquilo, olhava para Henrique e via potencial para além de sua camisa "Clubber summer 97" da C&A, sentindo-se mais liberado para se abrir naquele bate-papo.

- Olha, eu preciso te confessar... Sou fã de Guerras nas Estrelas! - disse, sem disfarçar uma ponta de insegurança com a declaração meio nerd. Besteira, mal sabia ele que Henrique adorava um filme com efeitos especiais e naves que explodiam fazendo barulho mesmo no espaço, onde o som não se propaga.
- Ai, eu sou completamente fã! Adoro, vi todos! - empolgou-se Henrique.
- Cara, aquele encontro entre o Darth Vader e o Ben Kenobi no primeiro filme (Paulo tinha seu lado nerd, mas não nerd o bastante para chamar o primeiro filme da saga de episódio IV)...
- Nossa, eu fico arrepiado quando vejo. Até hoje! - completou Henrique sem esconder a satisfação de estarem entrando em terreno familiar.
- "I've been waiting for you Obi-Wan, we meet again at last and the circle is now completed..." - dublou Paulo forçando um tom grave como o do James Earl Jones.
- "... When I left you I'm about the learner, now I am the Master!" - completou Henrique.
"Only the master of evil, Darth!" repetiram os dois juntos, rindo e quase cruzando sabres de luz imaginários ali na mesa. Ou uma versão mais explícita das espadas laser caso o encontro houvesse se dado em algum banheiro de pegação masculino. Ah, se George Lucas imaginasse quantos casos gays começaram graças às falas de sua obra-prima...

A conversa evoluiu e parecia que não iria parar tão cedo. A sessão do tal iraniano já não importava mais e eles pediram mais dois capuccinos. De Guerra Nas Estrelas eles foram para o Planeta dos Macacos. "Get your stinking paws off me, you damned dirty ape!" gritou Paulo, enquanto Henrique se lembrou de clássicos como O Campo dos Sonhos e seu "If you build they'll come". "I love the smell of Napalm in the morning", "You want the truth? You can't handle the truth!", "I keep my friends close, but the enemies closer"... E a tarde seguia noite adentro, grande filme após grande filme, de Kubrick a Coppola, de Nascido para Matar a Cães de Aluguel, o repertório de grandes frases parecia não se esgotar nunca.

O frenesi cinematográfico e sexual era intenso e palpável. Eles suavam, se olhavam nos olhos e se continham para não colocar o pau pra fora e encenar ali mesmo uma luta digna dos melhores capa-e-espada da década de cinquenta. Paulo com o olhar rútilo e a boca molhada lançou então sua última cartada, aquela que para um cinéfilo era o equivalente a orgasmos múltiplos. Ele declamou o monólogo de Samuel L Jackson em Pulp Fiction! No original!!!

-"... And you will know My name is the Lord when I lay my vengean..."
- Hasta La vista, baby!
Ahn??! - Paulo parecia haver levado um choque que o tirou do leve transe proporcionado pela força e beleza do monólogo.
- Esse monólogo aí, é legal, mas a frase que, assim, eu acho foda mesmo é essa!
- Ahn, do que você está falando? - Paulo ainda parecia um pouco confuso.
- O Exterminador do Futuro II, pô! "Hasta la vista, beibe", rélo-lou! - lembrou-lhe Henrique.
- Hum...
- Preciso confessar, mas eu sempre imaginei que, assim, se um dia eu tivesse que matar alguém, sabe? Não que eu queria, lógico, mas se tivesse, eu ia usar essa frase! - A empolgação de Henrique com o filme do governator era real e crescente. Ele havia dito, amava sci-fi e explosões.

Paulo não sabia bem o que pensar, de Pulp Fiction para o Exterminador do Futuro II, porra? O que ele poderia dizer? Não que precisasse, pois agora era Henrique quem assumia o comando da conversa e narrava sozinho a cena que sempre desenvolveu em sua cabeça.

- É eu ia chegar, apontar minha pistola e mandar "Hasta la vista, beibe"!
- ...
- E BANG!!!! Um tiro bem no meio dos cornos, heheheh!
Paulo continuou calado por mais alguns minutos sem que Henrique percebesse. Então pediu licença e levantou-se, dizendo que iria comprar um Free Light.

Nunca mais voltou.

Que merda, mais uma grande foda estragada pelo Schawznegger e o cinema de ação da década de noventa... (E o pior é que ele parecia bem-dotado!)

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