terça-feira, outubro 30, 2007

Deus falou comigo ou god is dog

Eram três da tarde e eu estava sentando no sofá trocando os canais da tv a cabo sem prestar atenção a nenhum programa em especial quando um cachorro preto de três pernas abriu a porta da cozinha e caminhou em minha direção. De quem era aquele cachorro e como ele desenvolvia com graça apesar da falta de uma perna foram dúvidas sopradas na minha cachola, dúvidas que se dissiparam quando, depois de sentar e coçar a orelha, ele falou comigo. "Olá Renato, como vai?" foi o que ele disse, e sua voz soava tão sábia e pacífica que, por mais ilógico que fosse, me manteve sentado e prestando atenção em sua apresentação formal ao invés de me atirar pela janela por pensar ter enlouquecido definitivamente. O cão de três pernas continou falando de maneira pausada, eu poderia dizer até sussurada, caso cães tivessem lábios, e eu permanecia prostrado no sofá entre desacreditado e curioso, somente ouvindo o que ele dizia sem me preocupar com a verossimilhança e o fantástico da coisa toda.

"Eu sou Deus, Renato, e vim ter contigo", foi a forma que o cão achou de me explicar o porquê dele estar ali, sentado no chão frio da sala de um apartamento de classe média em São Paulo. Eu não podia acrditar, e não pelo fato de achar impossível que um cão decida falar a língua dos homens, mas porque não acreditava em deus. Era um ateísta convicto e, desse o animal de três pernas qualquer outra explicação, seria mais plausível e mais passível de minha crença que afirmar que era uma entidade imaterial que cientifica, filosófica e praticamente inexistia para mim. Decidi desafiá-lo a provar que ele era realmente quem dizia ser:
- Eu entendo que assumir a forma de uma criatura ordinária, deficiente e frágil é algo bem típico de um deus cristão, mas o negócio é que...
O cachorro-deus me interrompeu:
- Mas quem disse que sou um deus cristão, Renato? O cristianismo, assim como qualquer outra religião, é uma invenção de vocês homens que pouco tem a ver comigo. Além do mais, a razão de ter escolhido essa forma para vir falar-lhe é justamente porque eu sei que lhe causaria compaixão e amabilidade ao invés de temor paranóico. Por favor, não ofenda minhas intenções com a agenda cristã!

Nisso deus, ou quem quer que ele fosse, estava certo. Nada era mais capaz de me desarmar que a imagem de um cachorrinho cotó, mas insisti para que ele me provasse sua onisciência:
- Se você é mesmo deus, então me diga o que eu estou pensando agora! - falei em tom de bravata.
- Você está pensando em como é mais inteligente que eu - respondeu o cão sempre ponderado.
- Ok, mas se você é deus de verdade, então você pode dizer algo sobre mim que mais ninguém sabe, algo que sempre neguei, que nunca admiti para nenhuma pessoa nesse mundo.
- Você, no fundo, acredita em mim - falou o deus cotó e de pêlo brilhante com a placidez de quem traz consigo toda a verdade do universo.
Fiquei calado, procurava rememorar ocasiões em que meu ateísmo tenha vacilado, em que eu inquiri a certeza da inexistência, em que eu tenha buscado respostas além das provas do cientificismo.
- Fique tranquilo, você não tem consciência de que acredita. Você nem ao menos é capaz de, objetivamente, dizer que acredita em mim, mas eu sei - acalmou-me o cachorro.
-... Então você é mesmo deus? Você existe!
- Não, eu não existo, e nisso vocês e todos os outros ateístas do mundo, mesmo aqueles que gritam meu nome em desespero na hora mais negra de sua existência, estão certos. Existir não é comigo. Eu sou!
- Falando assim você soa bem convencido para um cachorro de três patas, sabia? Se você é, e não existe, porque assumir a forma de um animal, por que não simplesmente sussurar sua condição aos meus ouvidos?
- Bom, já havia tentado isso antes com resultados pouco frutíferos. Não deu muito certo com Nietzsche e Nijinski, os caras terminaram meio queimados, né? Achei melhor parar com essa estória e me assumir como algo em que vocês homens crêem piamente.
- Um cachorro perneta?
- Não, um ser inferior. É impressionante como vocês são capazes de acreditar em qualquer coisa desde que ela seja menor, mais frágil e menos inteligente. Essa insegurança e presunção humanas me cansam!

Eu me via diante de uma situação de absurdo tal, sentado no sofá conversando com um cachorro que dizia ser deus, que o mínimo que eu poderia fazer era acreditar em todo aquele circo fantástico transcedental que se armava para zombar da minha falta de fé e, de uma vez por todas, embarcar na verdade de tudo aquilo. Se deus decidiu por bem tomar a forma de um cão sem uma das pernas apenas para meu contento e de todos os lugares possíveis do universo, entrar na sala do meu apartamento, alguma mensagem especial ele trazia para mim.
- Ok deus, então o que te traz aqui?
- Nada... - respondeu deus enquanto lambia suas partes caninas.
- Ora, vamos lá - sorri demonstrando cumplicidade - Qual a minha missão?
- Sua missão, como assim, sua missão?
- Oh deus, numa boa, sem esse clichê de mensagens cifradas, informação truncada e parábolas que, se você é deus já deveria saber, eu não vou conseguir entender! Colé, se você veio até aqui, alguma coisa de especial eu tenho pra fazer na vida, né? Ora bolas...
- Não - e eu posso jurar que ele sorriu.
- Como não?
- Bom, quer dizer, você vai arrumar um emprego, vai casar... Não com essa sua namorada, uma outra menina que você vai conhecer no seu trabalho. Terão dois filhos, vão morar nesse apartamento que você herdará com a morte de sua mãe e vai ser medianamente contente como 98% da raça humana. Ah, e vai morrer de causas naturais aos 79 anos! - disse deus se espreguiçando sobre uma faixa de luz que entrava por uma fresta da cortina e virnado-se de costas para mim em despedida.

Enão era isso? Nenhuma epifania, nenhuma missão, nenhum segredo sagrado para carregar como um fardo especialíssimo até o fim de minha estada na Terra. A visita de deus fora exatamente isso, somente uma visita, uma curiosidade do criador para como uma de suas criaturas, escolhida ao acaso como quase tudo nessa vida. A ironia mais mordaz da confirmação da existência, ou melhor, de presenciar a divindade sendo em toda sua plenitude, tinha sido descobrir que eu não ia dar em merda nenhuma. Não que eu esperasse ser um profeta ou algo do tipo, mas depois que aquele cachorro entrou aqui... Poxa, preciso admitir que comecei a fazer planos. Quem deus pensa que é para invadir minha casa, tirar-me da letargia diária em frente à tv e restituir minha fé antes de sair pela mesma porta que entrou abanando o rabo? Ótimo, tudo o que eu ganhei com a prova da presença de deus entre nós foi a confirmação de quão insípida minha vida continuará sendo e uma poça de xixi de cachorro em cima do tapete da minha mãe. Deus é realmente inacreditável!

3 comentários:

Unknown disse...

GÊNIO!
mto bom Menezes, dei minha paradinha aqui dos trabalhos agora, vim ver alguma banda ao vivo q eu gosto no youtube, baixei um filminho pornô novo e agora li seu blog! O mais legal é conseguir visualizar imagens/ilustrações pra tudo q vc escreve. Só não ilustro uma pro conto de hoje pq tô atolado aqui de coisa pra fazer!
abraço do seu leitor número um ahah!

Julio Lapagesse disse...

Ai Menezes, meu nome é Julio.
Sou de Brasília, e curto muito esse seu blog.
Genial!

Sempre entro aqui para ler.
Parabéns.

Ah e sobre esse conto do Cão-Deus, eu também imaginei imagens/ilustrações para ele.


abraços

Menezes, o cretino disse...

"Gostou? Divulgue pras amigas!"

Sempre quis usar essa frase num âmbito sexual, mas a vida não me sorriu da maneira que eu esperava. Sendo assim, faço uso dela agora e você se sinta á vontade para comentar com quem quiser, hehehe!

Muito grato por entrar aqui e perder seu tempo lendo o que eu escrevo.