segunda-feira, outubro 15, 2007

Lista de exigências

Acordei tarde com a cama empapada de suor. O calor úmido e sufocante que toma as ruas e invade meu quarto me força a levantar. Ainda zonzo caminho até o banheiro tateando as paredes do corredor. Uma olhada no espelho e eu sou exatamente aquilo que a imagem reflete e os sintomas indicam: a nuca dura doída, os olhos negros e o lábio pulsante. Eu sou um saco de pancadas. Na palma da minha mão garranchos borrados são resquícios do que deve ter sido a noite anterior. Algumas decisões que tomei e não me recordo. Eu tenho uma lista de exigências escrita na palma da minha mão.

Não há muito para se lembrar das últimas horas do meu dia anterior. Mais uma surra decerto, mais uma vez refazendo solitário o caminho que leva às escadas do meu prédio. Quem se importa? Eu vasculho os bolsos da calça velha apenas parar confirmar que, novamente, meu dinheiro foi tomado. Poderia fingir que não conheço os responsáveis, mas sei o nome de cada um deles. São sempre os mesmos, sempre os mesmos. Nós estamos vivendo com o mínimo necessário para nos considerarmos vivos. Estamos "apenas vivendo", como eles preferem dizer, e conformados com isso. Olho novamente a lista de exigências escrita de caneta na palma da minha mão. O suor não apagou as decisões e isso deve significar alguma coisa.

Fico encarando o escrito sentado no vaso sanitário. Eles tomam o nosso dinheiro, nos mandam de volta para nossas casas acuados, eles sabem que a gente vive mal e eles não ligam. Eu estou machucado e tenho hematomas que nunca cicatrizam por conta do abuso, mas eu não tenho medo, sou só uma vítima do pavor que eles infligem. Todo meu dinheiro, toda minha vontade, toda minha razão, todo dia eles arrancam um pouquinho de mim. A palma da minha mão fecha e esmaga a lista de exigências escrita nela, mas não para esconder, não quero que ela desapareça. Eu tenho os punhos fechados e uma lista de exigências escrita na palma da minha mão, é hora de ir para a rua.

Desço as escadas decidido, ansioso para resolver o que eu sempre soube que deveria ser resolvido, apenas adiava. É da natureza humana sempre lembrar daquilo que escolhemos esquecer, deve ser por isso que agora, pela primeira vez, as marteladas no cérebro pareçam mais suaves. O rosto marcado esboça um sorriso e uma gargalhada raivosa e desesperada ecoa dentro de minha cabeça. Na rua, o rádio de um carro estacionado sobre a calçada bloqueando minha passagem toca uma música que diz que deus é só uma criança com a fralda suja. "Podecrê...", os tambores marcam meus passos até a porta daquele bar. Eles estão lá dentro, sentandos de costas, rindo alto, orgulhosos de sua existência. Confraternizam como porcos sobre a comida sem saber que minha vingança possui o nome de cada um deles.

A pedra estoura a vidraça e acerta o gordo provocando um barulho oco e uma explosão de sangue bem no topo de sua cabeça. Pronto, eles já sabem que eu estou ali, apesar de ainda não imaginarem exatamente o que eu quero. Eu quero o que foi tomado de mim diariamente todos esses anos, seus filhos da puta! Mas minha cobrança não é em espécie, eu estou aqui para coletar meus atrasados em forma de toda dor que vocês já provocaram. A troca me parece justa e antes que o dono do bar consiga fazer que a polícia chegue e me leve dali eu já terei acabado. Eles saem prontos a me recolocarem no meu papel, mas apenas me cercam na calçada, não possuem mais tanta certeza de que eu sou um alvo tão fácil uma vez que tomei a iniciativa da violência. Enquanto eles ainda assimilam a prepotência desse merda que esqueceu-se do seu lugar, mais uma pedrada voa rápido atingindo o careca entre o nariz e a boca com toda a força que eu seria capaz de colocar.

Com os outros dois fora, agora sou apenas eu contra o manda-chuva e não sinto medo algum, pela primeira vez. Eu estou decidido e a determinação é mais assustadora que meu próprios ataques. Um soco apenas, bem colocado, justiceiro, redentor. A porrada estilhaça seu queixo fazendo que os dentes trinquem e ele adormeça com as costas queimando na calçada e os sapatos novos afundados numa poça de sujeira no meio-fio. E agora? Cata a grana nos bolsos dele, vê se ele ainda não gastou o que é seu. Não, corre, sai fora dali antes que a polícia chegue! Lá dentro do bar o dono me encara com seus olhos arregalados e o telefone grudado à orelha. As pessoas passam na minha frente, algumas param e encaram os dois homens estirados na calçada, olham pra mim e vão embora, mais preocupadas com suas prórpias vidas. Elas mal sabem que eu tomei uma decisão na noite anterior e acordei com uma lista de exigências escrita na palma da minha mão. Uma lista de exigências que dizia já basta!


Esse conto é inspirado na música List of Demands (Reparations) do ator e cantor Saul Williams. Se você nunca ouviu, baixe-a para escutar enquanto lê isso aqui.

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