terça-feira, setembro 18, 2007

Musicalle de Copacabana

A loja é um oásis no meio do inferno da Avenida Nossa Senhora de Copacabana às duas da tarde de um dia qualquer de janeiro. O calor impiedoso sufoca os transeuntes espremidos entre o corredor formado pelos camelôs e os seguranças nas portas das lojas dos chineses. Fumaça do escapamento dos circulares e evaporação de todo aquele concreto. Asfalto e cimento de um lado ao outro, a loja é um oásis no meio do inferno.

Entro apressado, agradecido pelo ar-condicionado instalado logo acima da porta de vidro. Passo pelas gôndolas de cds sem que nenhum título desperte minha atenção. Tudo cd merda. Lá no fundo, atrás do balcão, ela fica parada. Chego e apresento:
- Oi, esses quatro cds aqui. Quero vender.
A vendedora examina os quatro títulos que tirei da minha estante, quatro cds que eu gosto, mas não gosto tanto, com treinada indiferença. A gerente ensinou a eles não demonstrarem nenhuma reação aos títulos oferecidos, assim os pretensos vendedores sempre pensam que seus discos não valem porra nenhuma.
- Você aguarda que vou ver com a gerente, tá?
Ela sai e caminha para o escritório da gerente, de onde posso vê-las, já que ele fica atrás do balcão e possui uma enorme janela de vidro. Deve ser para a gerente prestar atenção no trabalho da vendedora, ver se ela está prestando atenção na loja. Muito ladrãozinho nessa área.

A gerente sabe que eu estou observando e é melhor que a vendedora na análise sem reação dos cds. Olha a capa, abre, tira o disco, examina com uma falsa expertise, torna a olhá-los, comenta algo com a vendedora e os empurra de volta. A vendedora volta para o balcão onde eu estou esperando:
- Olha só esse aqui mesmo interessa, esses aqui a gente não trabalha. - E me empurra de volta os outros três cds como se devolvesse ao dono algo que lhe causa verdadeira repulsa.
Mentirosa, só no caminho entre a porta e o balcão eu notei pelo menos dois cds do mesmo estilo. Um até da mesma banda, e olha que eu nem parei em frente às gôndolas. Burra, não sabe de nada. Aposto que foi a gerente quem ensinou ela a dizer isso.

- E quanto por esse, então? - pergunto contrariado.
- Olha, a gente não paga mais do que cinco.
Cinco reais? Porra, eu paguei trinta nessa merda há três anos atrás. Piranha, safada!
- Tudo bem... - aceito entre resignado e revoltado. Melhor algum dinheiro que nenhum dinheiro. Se eu não tivesse precisando mandava ela se fuder. A vendedora me olha e sorri. Filha da puta, deve tá pensando que eu sou pobre.

Entro apressado novamente, não gosto de ficar muito tempo nessa loja, todo mundo me encarando sempre que eu venho aqui. Dessa vez mais confiante, um cd duplo dos Beatles na mão. Duvido que ela não pague uma boa grana por ele. A vendedora deve ter me reconhecido do outro dia e acompanha meu trajeto com os olhos atentos até que eu chegue ao balcão e empurre o cd na sua direção.
- Quanto por esse?
- Ah, isso não interessa. Dessa banda aqui a gente já tem muito.
Fico encarando seus olhos vagos. Aposto que ela percebe minha raiva, aposto que ela consegue traduzir essa raiva em necessidade de dinheiro. Filha da puta, deve tá pensando que eu sou viciado.

Dou meia volta e me detenho em frente a seção de letra D. Rock internacional. Vou empurrando os cds e lendo os títulos sem esperar encontrar nada em especial, apenas matando o tempo e aproveitando o ar-condicionado. Empurro com força e os cds batem um no outro provocando um estalo ritmado. Puxo um título a esmo e volto ao balcão.
- E trocar esse por esse, pode?
A vendedora analisa os dois. Um cd duplo dos Beatles e uma reprensagem fuleira de alguma banda de thrash metal alemã da década de noventa. Ela aceita. É claro que aceita, excelente negócio eu estou propondo. Se não tivesse roubado esse cd da prateleira do meu irmão mais velho, eu nunca ousaria trocar um pelo outro. Mas foda-se, nunca gostei de Beatles mesmo.
- Agora você não se importa em ficar com o disco, né? Já saquei a coisa por aqui...


Entro na loja e paro em frente a primeira gôndola, logo à minha esquerda. A vendedora certamente me reconheceu, tanto que olhou para o segurança, um mulato parrudo vestido de preto e sentado num banco à direita da porta e esticou o olhar até mim. "Presta atenção nesse aí!". Ela acha que eu não percebi. Filha da puta, deve tá pensando que eu sou ladrão.

Resolvo perambular por entre as gôndolas, mexendo em cds, provocando o estalo ritmado ao empurrá-los com os dedos, visitando seções que não me interssam e analisando capas de disco de artistas que eu não faço idéia de quem são e nem me importo em saber. A vendedora sai da sua posição vigilante no balcão para os fundos da loja. A gerente não está hoje e o segurança, bem, o segurança está mais preocupado em fazer o tempo passar sentado num banco admirando o movimento dos pedestres que precisam desviar um dos outros enquanto são imprensados contra as lojas pelas barracas dos camelôs.

Tinha um cd ali, antepenúltimo na terceira fileira da letra N, sei lá em qual seção. Nina Simone, uma negona na capa. Ninguém olhando. Meto o cd no bolso da bermuda. "Quem mandou nunca comprar meus cds, sua escrota?". Dou mais algumas voltas por entre as gôndolas, mas agora fingindo atenção nos títulos da loja e em nada mais a minha volta, o que denota inocência. Dois minutinhos só para não dar bandeira, melhor vazar logo com o cd da negona no bolso.

A volta ao inferno me é impedida pela mão do segurança apertando meu ombro.
- Que que tem aí na tua bermuda?
- Nada...
Olho para trás e percebo a vendedora me encarando do balcão. Estava de olho em mim o tempo todo e avisou ao segurança que me interpelasse somente quando eu estivesse saindo. Aprendeu isso com a gerente também, dar a sensação de êxito até o momento da fuga e então desmascarar o vagabundo.
- Esse cd custa dezoito reais - ela me diz em seu tom monocórdico de rotina, mas que deixa entrever um certo timbre de reprimenda.
- Tá...
- Vai levar?
- Não, não...
- Então pode ir embora. E não volta mais aqui, ouviu bem?

O segurança arranca o cd do bolso da minha bermuda e me lança um olhar que é humilhante porque é mais desprezo que desaprovação ou ódio. E ódio eu sinto dela, querendo mostrar serviço pra gerente. Porque essa área é cheia de ladrãozinho e ela é uma empregada que presta atenção na loja. Filha da puta, o que ela pensa que eu sou? Vou me vingar. Vou me vingar dela quando ela sair daí, aí eu quero ver essa marra. Só eu e ela, sem segurança, sem gerente pra ela lamber o cu. Vou ficar esperando ela aqui fora. Vou sim. Foda é esse calor, puta merda! Copacabana, que inferno.

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